Chega pra você um paciente masculino 32anos, portador de DM insulinodependente encaminhado para aérea de coorte de doenças respiratórias devido taquidispnéia.
SINAIS VITAIS: PA: 100x55mmHg FC: 135bpm Sat: 91% já com MNR 10l FR: 40irpm Tax: 36.7C, Glicemia: 350mg/dl
Paciente refere que há 1 semana iniciou quadro de mal estar, teve um episódio de diarréia, evoluiu com hiporexia, tosse seca e febre há 2 dias. Procurou hoje o PS por muita falta de ar e dor abdominal.
Ao exame físico as alterações que chamam atenção são uma leve agitação, discretos creptos em bases pulmonares, muito esforço respiratório, uso de musculatura acessória (intercostal, abdominal e com retração de fúrcula), sudorese fria. E apesar da dor abdominal, não há sinais de peritonite à palpação.
Você solicita uma gasometria arterial: pH 7.0, PCO2: 24, pO2: 56 HCO3: 8 Lactato: 3

Você então tem duas principais hipóteses diagnósticas:
Cetoacidose diabética (Hiperglicemia + acidose metabólica)
Pneumonia por SARS-CoV2
Nós evitamos ao máximo intubar pacientes com pura descompensação metabólica da cetoacidose, pois são pacientes que respondem bem e rapidamente ao tratamento que é: hidratação + insulinoterapia + reposição de eletrólitos conforme necessidade.
Mas vamos focar aqui em um paciente extremamente grave, com uma doença pulmonar aguda descompensando o quadro diabético, provavelmente COVID19, complicando o tempo de recuperação + risco de falência respiratória, por isso, você decide que junto a terapêutica da cetoacidose diabética, vai ser necessário intubar esse paciente.
Você colhe exames, culturas, inicia hidratação, e antibiocoterapia empiríca, enquanto inicia a pré-oxigenação e o preparo para intubação.
Essa vai ser uma Via Aérea Difícil?
Faz parte do preparo para a intubação avaliar nesse paciente se há preditores de via aérea difícil, para que assim você escolha seus planos de intubação.
Geralmente essa avaliação está focada em alterações anatômicas que dificultariam o manejo da via aérea (visualização das cordas vocais, passagem do tubo, ventilação, via aérea cirúrgica), dessa forma colocando o paciente em risco.
“Será que esse paciente tem alguma alteração que vai atrapalhar abrir a boca, mobilizar a região cervical, ou alguma obstrução para a laringoscopia? Será que esse paciente tem alguma alteração que atrapalhe o uso da BVM de forma adequada, como barba volumosa? Ou o uso do dispositivo supra glótico? Ou uma alteração anatomica que atrapalhe ou impossibilite a cricotiroidostomia de emergência como cicatriz de radioterapia?”
Então a via aérea anatomicamente difícil, é quando o paciente está em risco caso você não consiga intubá-lo por problemas anatômicos.
Já a via aérea fisiologicamente difícil é quanto o paciente apresenta alterações fisiológicas que o coloque em risco de desfecho ruim durante ou logo após a intubação. Apesar da intubação. Ou por causa da intubação, por suas alterações fisiológicas pela ventilação por pressão positiva.

E essas alterações, ao contrário do que se pensava, precisam ser identificadas precocemente e devem ser amenizadas: você precisa reconhecer os riscos e estabilizar o pacientes antes de proceder a intubação ou estar preparado para lidar com as potenciais complicações imediatamente se acontecerem.
São 5 as principais alterações fisiológicas que precisam de atenção antes da intubação: hipoxemia, hipotensão, acidose metabólica grave, insuficiência ventricular direita, broncoespasmo severo.
Voltando para o nosso paciente: Ele apresenta predadores de via aérea fisiologicamente difícil?
IC(Índice de Choque): 1,35 – FC/PAS (Normal < 0.8) – sinais de choque
P/F: 93 (Normal > 300) – Hipoxemia grave
pH:7.0: Acidose metabólica grave – pCO2 esperada: 20 (não está compensando)
qSOFA: 2 + Lactato: 3 (preditor de gravidade)
Via aérea Fisiologicamente Difícil
Sakles JC, Pacheco GS, Kovacs G, Mosier JM. The difficult airway refocused.
“Pacientes gravemente críticos com alterações fisiológicas severas que apresentam risco aumentado para colapso cardiopulmonar durante ou imediatamente após a intubação.”
Acidose Metabólica grave
Vamos focar nesse post apenas na compensação da parte metabólica, mas vejam que esse é um paciente que precisa de atenção na oxigenação e hemodinâmica também. Ou seja, essa é uma intubaçao com predições dificílimas.
O que acontece durante a sequência rápida de intubação na acidose metabólica grave?
Para realizar o procedimento o paciente precisa ficar em apnéia, e então obviamente nós temos uma diminuição da ventilação pulmonar, concomitantemente o CO2 não é “lavado” da via aérea, gerando um acumulo sanguíneo de CO2, que é um ácido, diminuindo então ainda mais o pH sanguíneo. Num paciente com pH normal, ou levemente alterado, isso pode ser muito bem tolerado, porém um paciente já com um pH 7,0, uma queda abrupta nesse valor pode ser ominoso.
Nós sabemos que o sistema respiratório é um dos mais importantes para a compensação da acidose metabólica e ele começa a sua ação em segundos, aumentando o pH em torno de 50 a 75% já em 2 a 3 minutos, garantindo tempo ao organismo se re-organizar. Logo, segundos sem sua ação pode ser arriscado para os pacientes críticos.
Além disso, é preciso lembrar que a FR aumentada é a própria defesa para a compensação da acidose metabólica, e a maioria das vezes o organismos faz isso muito bem. Então se após a intubação for colocado nos parâmetros do ventilador mecânico a FR NORMAL e volume minuto NORMAL, de novo há aumento do CO2 e ainda mais diminuição do pH.
E qual o problema? Afinal um pouquinho de acidose até facilita a liberação do Oxigenio nos tecidos porque desvia a curva da oxi-hemoglobina para a direita, certo?
A acidose metabólica grave (pH< 7,1) pode ter efeitos deletérios graves:
– Vasodilatação Arterial (piorando o choque)
– Diminuição contratilidade miocárdica
– Riscos de arritmias
– Resistência a ação de DVAs
– Disfunção celular
O que fazer?
Sempre o tratamento inicial primordial é: tratar a causa base!
No paciente com acidose metabólica grave o melhor é evitar a intubação!
Principalmente na cetoacidose metabólica, que conforme melhora a hidratação e a aporte de insulina, há melhora progressiva do pH sanguíneo. Outras causas de acidose metabólica como IRA ou intoxicação poder ser mais complicado tratar a causa base pois depende de recursos externos como diálise.
Bicarbonato de sódio
O uso do bicarbonato de sódio para tratamento de acidose metabólica é controverso, principalmente em valores de acidose não críticos (pH> 7,2). Se tiver IRA associado já temos evidência de beneficio no seu uso ao evitar a necessidade de terapia de substituição renal (pH < 7,2).
Já para a cetoacidose diabética onde não há deficiência corporal de bicarbonato, pois ele está quase todo sendo usado para tamponar os cetoácidos formados pelo metabolismo errático por causa da falta de insulina, seu uso se torna ainda mais limitado, sendo indicado apenas em situação de pH < 6,9.
Talvez podemos considerar seu uso de forma mais precoce nessas situações de acidose crítica e necessidade de intubação, (porém não temos evidências para esses casos) e ainda assim considerar repor apenas quantidades limitadas com reavaliação continua.
A dose é empírica, sendo necessário muito atenção na diluição (evite realizar HCO3 sem diluir!)
NaHCO3 100mEq + AD 400ml
Correr EV em 2h
Se K < 5.3: Associar KCl 10% 2amp
Eu faria essa solução e deixaria correndo, enquanto procedo com as preparações da intubação.
Atenção: Lembrando ainda, conforme a fórmula abaixo, que o HCO3 é convertido a CO2, se feito em excesso, associado a melhora progressiva do estado de cetoacidose e recuperação do HCO3 das moléculas de tamponamento, num paciente já com limitação na ventilação, seu aumento pode causar desvio da curva para o aumento CO2, que também é facilmente difundido para as células e paradoxalmente pode diminuir ainda mais o pH intracelular. Além de carrear K para o intracelular.
H+ + HCO3 – = H2CO3 = CO2 + H2O
Ventilação Mecânica
Acho que a parte mais importante do manejo desses pacientes, é o cuidado com a parte respiratória.
Se optar pela Sequência Rápida de Intubação: preparar para que a intubação seja realizada de forma mais rápida possível: utilizar seu melhor material, o intubador mais experiente, paciente com o posicionamento mais otimizado, e medicações realizadas de forma hábil, para garantir o menor tempo de apneia possível.
Você vai precisar de pessoal experiente em Ventilação Mecânica e é preciso lembrar de deixar os parâmetros ventilatórios ajustados para o que o paciente precisa e não para o que seria um normal!
Achei bem interessante essa prática : Primeiro você calcula qual deveria ser o pCO2 esperado para esteve paciente, de acordo com o HCO3:
Winter’s Equation (Goal C02) = 1.5 X HCO3+ 8 (+/- 2)
E então, de acordo com essa tabela, você tenta alcançar na VM o valor de Volume Minuto.

Esses são apenas parâmetros inicias. Após 30 minutos a uma hora com uma nova gasometria, você re-faz os ajustes finos usando a fórmula abaixo:
Volume minuto= [PaCO2 x Volume Minuto (do VM)]/CO2 Desejada
E conforme avançar o tratamento da cetoacidose, novos parâmetros deveram ser ajustados, esperançosamente para melhor.
Outro opção mais segura para esses pacientes seria utilizar a técnica de Intubação no Paciente Acordado, assim você evitaria o período de apneia.
É isso pessoal, mandem aí seu feed-back, suas experiências, e se tiver outras fontes!
Nos próximos posts: Como pré-oxigenar esses pacientes e estabilizar o estado hemodinâmico.
Mais #FOAMed
- Frank Lodeserto MD, “Simplifying Mechanical Ventilation – Part 3: Severe Metabolic Acidosis”, REBEL EM blog, June 18, 2018. Available at: https://rebelem.com/simplifying-mechanical-ventilation-part-3-severe-metabolic-acidosis/.
- Justin Morgenstern, “Emergency Airway Management Part 2: Is the patient ready for intubation?”, First10EM blog, November 6, 2017. Available at: https://first10em.com/airway-is-the-patient-ready/.
- Salim Rezaie, “How to Intubate the Critically Ill Like a Boss”, REBEL EM blog, May 3, 2019. Available at: https://rebelem.com/how-to-intubate-the-critically-ill-like-a-boss/.
- Salim Rezaie, “RSI, Predictors of Cardiac Arrest Post-Intubation, and Critically Ill Adults”, REBEL EM blog, May 10, 2018. Available at: https://rebelem.com/rsi-predictors-of-cardiac-arrest-post-intubation-and-critically-ill-adults/.
- Salim Rezaie, “Critical Care Updates: Resuscitation Sequence Intubation – pH Kills (Part 3 of 3)”, REBEL EM blog, October 3, 2016. Available at: https://rebelem.com/critical-care-updates-resuscitation-sequence-intubation-ph-kills-part-3-of-3/.
- Lauren Lacroix, “APPROACH TO THE PHYSIOLOGICALLY DIFFICULT AIRWAY”, https://emottawablog.com/2017/09/approach-to-the-physiologically-difficult-airway/
- Scott Weingart. The HOP Mnemonic and AirwayWorld.com Next Week. EMCrit Blog. Published on June 21, 2012. Accessed on July 15th 2020. Available at [https://emcrit.org/emcrit/hop-mnemonic/ ].
- IG: @pocusjedi: “Pocus e Coronavirus: o que sabemos até agora?”https://www.instagram.com/p/B-NxhrqFPI1/?igshid=14gs224a4pbff
Referências:
- Sakles JC, Pacheco GS, Kovacs G, Mosier JM. The difficult airway refocused. Br J Anaesth. 2020;125(1):e18-e21. doi:10.1016/j.bja.2020.04.008
- Mosier JM, Joshi R, Hypes C, Pacheco G, Valenzuela T, Sakles JC. The Physiologically Difficult Airway. West J Emerg Med. 2015;16(7):1109-1117. doi:10.5811/westjem.2015.8.27467
- Irl B Hirsch, MDMichael Emmett, MD. Diabetic ketoacidosis and hyperosmolar hyperglycemic state in adults: Treatment. Post TW, ed. UpToDate. Waltham, MA: UpToDate Inc. https://www.uptodate.com (Accessed on July 15, 2020.)
- Cabrera JL, Auerbach JS, Merelman AH, Levitan RM. The High-Risk Airway. Emerg Med Clin North Am. 2020;38(2):401-417. doi:10.1016/j.emc.2020.01.008
- Guyton AC, HALL JE. Tratado de fisiologia medica. 13a ed. Rio de Janeiro(RJ): Elsevier, 2017. 1176 p.
- Kraut JA, Madias NE. Metabolic acidosis: pathophysiology, diagnosis and management. Nat Rev Nephrol. 2010;6(5):274-285. doi:10.1038/nrneph.2010.33
- Calvin A. Brown III, John C. Sakles, Nathan W. Mick. Manual de Walls para o Manejo da Via Aérea na Emergência. 5. ed. – Porto Alegre: Artmed, 2019.
- Smith MJ, Hayward SA, Innes SM, Miller ASC. Point-of-care lung ultrasound in patients with COVID-19 – a narrative review [published online ahead of print, 2020 Apr 10]. Anaesthesia. 2020;10.1111/anae.15082. doi:10.1111/anae.15082
Cite esse artigo como: Jule Santos, “Via Aérea Fisiologicamente Difícil – Acidose Metabólica”, blog Emergencia Rules, Acessado em 15 de julho 2020, em: https://emergenciarules.com/2020/07/15/via-aerea-fisiologicamente-dificil-acidose-metabolica/